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sexta-feira, 11 de julho de 2014

Os sintomas

Há dias que vinha sentindo uma dorzinha fina na virilha. Rosamundo, com aquela distração que é a sua bandeira de comando, só começou a senti-la provavelmente depois de muito tempo, pois até parador o Rosa é distraído. Na tarde em que percebeu a dorzinha, pensou: "Devo ter me contundido durante o futebol", sem se lembrar de um detalhe importante, ou seja, nunca jogou futebol.

À noitinha a dor diminuíra. Devia ser íngua. Mas Rosamundo é um sujeito muito impressionável. Para se sugestionar é quase um botafoguense, embora torça pelo Andaraí, time que já saiu da liga, mas ele ainda não percebeu.

Dias depois, visitando um amigo, com o qual estava brigado mas não se lembrava, encontrou-o acamado, sob a ameaça de seguir a qualquer momento para uma casa de saúde, onde seria operado, em regime de urgência, de uma hérnia.

Entre gemidos o amigo explicava como aquilo começara. Sentira uma dorzinha na virilha. Logo que começou pensou que era uma íngua e nem deu importância. Já nem se lembrava mais da dorzinha quando ela voltou com uma violência quase insuportável. Sentiu primeiro a impressão de que as calças estavam lhe apertando, mas as calças que vestia eram até folgadinhas. A impressão, no entanto, ficara, até dar naquilo: ali deitado, à espera do médico para entrar na faca.

E o amigo gemia. Foi quando chegou o médico, examinou assim por alto e sentenciou: "Temos de operar imediatamente. É uma hérnia estrangulada". E lá fora o amigo de Rosamundo a caminho do hospital. O Rosa, por sua vez, foi para casa, mas não tirava da cabeça a lembrança da dorzinha que sentira, parecidíssima com a do doente.

Sua suspeita transformou-se em pânico na manhã seguinte. Acordara tarde e atrasado para um encontro. Vestira-se no quarto escuro, para não acordar a mulher, e se mandara. Ainda não chegara ao encontro e todos os sintomas que levaram o outro para a operação de emergência começaram ase manifestar nele. Até aquele detalhe da calça que parecia apertar, mas estava folgada a olhos vistos, ele sentia.

Disparou para casa e foi logo pedindo o médico. Estava com hérnia. Deitou-se vestido mesmo, com medo de piorar, e a mulher apavorada começou a telefonar para o médico. Chamado assim às pressas, veio imediatamente. Entrou no quarto, olhou para a cara impressionantemente pálida de Rosamundo e mandou que ele se despisse para o exame.

E foi aí que o Rosa percebeu que, em vez de cueca, vestira de manhã a calcinha da mulher.


Fonte: "Gol de Padre e Outras Crônicas" — Stanislaw Ponte Preta — Editora Ática.
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quinta-feira, 10 de julho de 2014

Zezinho e o coronel

O coronel Iolando sempre foi a fera do bairro. Quando a patota do Zezinho era tudo criança, jogar futebol na rua era uma temeridade, porque o Coronel, mal começava a bola a rolar no asfalto, saía lá de dentro de sabre na mão e furava a coitadinha.

Teve um dia que Zezinho vinha atacando pela esquerda e ia fazer o gol, quando o Coronel da Polícia Militar, naquele tempo ainda capitão, saiu e cercou o atacante, de braços abertos. Parecia um beque lateral direito, tentando impedir o avanço adversário. Por amor ao futebol, Zezinho não resistiu, driblou o garboso militar e entrou no gol com bola e tudo. Ah! rapaziada ... foi fogo.

O então Capitão Iolando ficou que parecia uma onça com sinusite. Ali mesmo, jurou que nunca mais vagabundo nenhum jogaria bola outra vez em frente de sua casa. E, com a sua autoridade ferida pelo drible moleque do Zezinho, botou um policial de plantão em cada esquina, durante meses e meses. No bairro havia assalto toda noite, mas o Coronel preferia botar dois guardas chateando os garotos a deslocá-los da esquina para perseguir ladrão. Isto eu só estou contando para que vocês sintam o drama e morem na ferocidade do Coronel Iolando.

Prosseguindo: ninguém na redondeza conseguia entender como é que aquele Frankenstein de farda podia ter uma filha como a Irene, tão lindinha, tão meiga, tão redondinha. E entre os que não entendiam estava o mesmo Zezinho, cuja patota, noutros tempos, batia bola na rua.

Muito amante da pesquisa, Zezinho foi devagarinho pro lado da Irene. Primeiro um cumprimento, na porta do cinema, depois um papinho rápido ao cruzar com ela na porta da sorveteria e foi-se chegando, se chegando epimba... desembarcou os comandos. Quando a Irene percebeu, estava babada por Zezinho. Se ele quisesse ela seria até o chiclete dele. Claro, o namoro foi sempre à revelia do Coronel Iolando, que não admitia nem a possibilidade de a filha olhar pro lado, quanto mais para o Zezinho, aquele vagabundo, cachorro, comunista. Sem paqueração não há repressão.

O pai não sabia de nada e a filha foi folgando, até que chegou um dia, ou melhor, chegou uma noite a Irene tinha saído para ir à casa da Margaridinha, de araque, naturalmente, e na volta, depois de ficar quase duas horas agarrada com Zezinho debaixo de uma jaqueira, na segunda transversal à direita, permitiu que o rapaz a acompanhasse até o portão. Coincidência desgraçada: o Coronel Iolando estava se preparando para sair e ir comandar um batalhão no combate à passeata de estudantes. Chegou à janela justamente na hora em que Irene e aquele safado chegavam ao portão. Tirou o trabuco do coldre e desceu a escada de quatro em quatro degraus, botando fumacinha pelas ventas arreganhadas. Parecia um búfalo no inverno. Não deixou que o inimigo abrisse a boca. Berrou para Irene:

— Entre, sua sem-vergonha — e a mocinha escafedeu-se. Virou-separa o pobre do Zezinho, mais murcho que boca de velha, ali encolhidinho, e agarrou-o pelo cangote, suspendendo-o quase a um palmo do chão, e o rapaz ia até dizer "Coronel, o senhor tirou o chão de baixo de mim", pra ver se com a piadinha melhorava o ambiente, mas não teve tempo:

— Seu cretino — berrou Iolando — está vendo este revólver?(Zezinho estava). Pois eu lhe enfio o cano no olho e descarrego a arma dentro da sua cabeça, seu cafajeste. Está entendendo?(Zezinho estava). E vou lhe dizer uma coisa: está proibido de continuar morando neste bairro. Amanhã eu irei pessoalmente à sua casa para verificar se o senhor se mudou, está ouvindo?(Zezinho estava). Se o senhor não tiver, pelo menos, a cinquenta quilômetros longe desta área, eu passarei a enviar uma escolta diariamente à sua casa, para lhe dar uma surra. Agora suma-se, seu inseto.

O Coronel soltou Zezinho, que, sentindo-se em terra firme, tratou de se mandar o mais depressa possível. O Coronel, por sua vez, deu meia-volta, entrou em casa, vestiu o dólmã e avisou à filha que quando voltasse ia ter. O Coronel Iolando foi cercar os estudantes na passeata, houve aquela coisa toda que os senhores leram nos jornais e, quando retornou ao lar, encontrou a esposa muito apreensiva:

— Não precisa ficar com esse olhar de coelho acuado, sua molenga — avisou Iolando — Eu só vou dar uns tapas na sem-vergonha da nossa filha.

— Eu não estou apreensiva por isso não, Ioiô (ela chamava o Coronel de Ioiô), Eu estou com pena é de você.

— De mim??? — o Coronel estranhou.

— É que a Irene e o Zezinho saíram agora mesmo para casar na igreja do Bispo de Maura. Deixaram um abraço pra você.


Fonte: "Gol de Padre e Outras Crônicas" — Stanislaw Ponte Preta — Editora Ática.
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sexta-feira, 4 de julho de 2014

Perito vendedor de vaga em liquidação

De repente ficou sem emprego. Tinha nove anos de casa. O patrão era desses muito bonzinhos, que preferem indenizar e botar no olho da rua, baseado na Lei, enfim... essas bossas. O que eu sei é que ficou desempregado e me conta as virações em que tem se metido para arrumar, enquanto a situação estiver assim, mais pra urubu do que pra colibri.

— Com o dinheirinho da indenização, meu caro Stan... já quebrei galho às pampas. Ninguém tem erva viva, meu querido. Tá tudo with the face and the rage.

Ele fala muito bem inglês e, por isso, returning to the cold cow, gosta de traduzir para a língua de Robert Field as expressões do nosso idioma. Mas deixa isso pra lá e prossigamos com o raciocínio lá dele.

— Tá tudo duro, Stan... com o dinheirinho da indenização, vendi meu carro, por cinco milhões a prazo e, no dia seguinte, fui lá na agência onde vendera e comprei por três milhões à vista. Eles aceitaram logo.

— Mas como é possível! Em menos de 24h ficaram devendo a você dois milhões de cruzeiros, à-toa?

— Claro... É aí que the pork twist the tall. A bagunça é tão grande que ninguém se importa de dever. Todo mundo quer é segurar no dinheiro vivo para sentir no tato que ele ainda existe.

— Sim... mas vem cá...  Não há de ser só com isso que você consegue se sustentar.

— Ora, claro que não. Stan, por favor, put the horse out of the rain... Há outras maneiras da gente ir se aguentando. Eu acabo de descobrir uma excelente colocação para mim.

— Emprego público?

— De certa forma sim, já que a colocação é na via pública. Eu sou “Perito Vendedor de Vaga”.

— ???

— Pois é. Chego à porta de uma loja, de madrugada, e fico parado em frente. Vai logo formando uma fila atrás de mim, pensando que no dia seguinte haverá “queima geral”, "grande liquidação”, essas besteiras que eles inventam para enganar a plebe ignara. Ai, quando chega de manhã e a loja vai abrir, eu grito: “Quem quer comprar a minha vaga?”. Aparece logo uma porção de gente querendo comprar. Outro dia, à porta do tal de “Ponto Frio” vendi a vaga por cem contos.


Fonte: Jornal "Última Hora", de 01/04/1965 — Coluna de Stanislaw Ponte Preta.
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sexta-feira, 27 de junho de 2014

O dente mais caro do mundo


Aqui no Brasil tem cada médico, que eu vou te contar: para cobrar uma conta eles são melhores do que o Pepe para cobrar uma penalidade. Tem médico pela aí que, para ajeitar um bocadinho o nariz mal lançado de uma senhora vaidosa, apresenta uma conta cujo total dava até para comprar um porto particular para a Hanna.

Mas nem todo médico é assim. Em Madri, por exemplo, dois médicos deram uma bela lição de desprendimento, quando um atendeu o outro sem querer cobrar nada. Deu-se no consultório do Dr. Fernandez Rico, que além de esculápio é dentista. O distinto recebeu a visita do coleguinha lá dele, Dr. Samuel Vaillamon, que estava com um dente doendo que só saudade de mulher amada. O Dr. Rico extraiu o dente do Dr. Samuel e não quis cobrar nada.

O paciente estranhou e achou que o outro merecia, nesse caso, um presente. Livre do molar que o amolava (desculpem), o Dr. Samuel mostrou-se muito jovial e disse para o Dr. Rico:

— Tenho aqui um bilhete da Loteria Nacional. Fique com ele.

Como nenhum dos dois acreditava em azar, por isso, o presenteado guardou o bilhete e não se falou mais nisso. Ou melhor, não se falou mais nisso até o Dia de Reis, quando correu a Loteria Nacional da Espanha e o bilhete do Dr. Rico (presente do Dr. Samuel) saiu premiado com 20 milhões de pesetas, cerca de 335 mil dólares.

Vocês façam o obséquio de fazer a conversão monetária, que eu não sei para quanto baixou hoje o cruzeiro, mas — desde já — podem estar certos de que foi a extração de molar mais cara do mundo, barrando qualquer médico brasileiro de endireitar nariz. Tanto que o Dr. Rico está mais rico do que nunca e o Dr. Samuel Vaillamon, apesar de já ter extraído o dente há quase duas semanas, continua de boca aberta até agora.


Fonte: Jornal "Última Hora", de 14/01/1965 — Coluna de Stanislaw Ponte Preta.
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quinta-feira, 12 de junho de 2014

Vem aí a esperada “Cachaçabrás”

Depois que um deputado mineiro propôs que os parlamentares trabalhassem só de noite e de graça, depois que um deputado campineiro propôs a Lei Seca, depois que um deputado carioca propôs o aportuguesamento dos menus, depois que se apresentou o projeto importantíssimo de regulamentado do jogo de bingo, vem mais um deputado — desta vez o Sr. Luís Correia — com um projeto de lei que, em síntese, cria a “Cachaçabrás”. Trata-se de proposição que regulamenta a distribuição de bebida alcoólica e institui o monopólio do pileque, ou antes, da distribuição do pileque. Aqui estão alguns artigos propostos pelo ilustre parlamentar:

Art. 1. ° — Fica instituído o monopólio estadual da distribuição de bebidas alcoólicas, com exclusão apenas da cerveja. (Portanto, caríssimo, como o Estado é honesto, vamos ter uísque escocês legítimo feito aqui, e não o uísque falsificado sujeito à desonestidade das destilarias particulares).

Art. 2. ° — O Governo do Estado organizará um sistema de armazéns para distribuição de bebida. (Isto é que é incentivar o porte, companheiros. Em vez dos tradicionais armazéns de secos & molhados, armazéns só de molhados pra turma molhar o bico).

Art. 3. ° — Fica proibida a venda de bebidas alcoólicas em copo, antes das 12 horas. (Se isto tem a intenção de refrear o ímpeto dos levantadores de copo que costumam enfiar o pé no jacã desde cedo, essa intenção está gorada, pois, se antes do melodia não se serve bebida em copo, a plebe ignara vai castigar pelo gargalo. Isto não tem nem conversa).

Art. 4. ° — A receita líquida proveniente deste monopólio, a ser calculada a base de 25% sobre o movimento bruto, será entregue a Secretaria de Assistência Social e destinará à velhice desamparada”. (Levando-se em conta de que quem vende bebida não tem renda bruta, pois a renda é sempre líquida, chegamos à conclusão de que a velhice desamparada vai enriquecer com o pileque dos outros, razão pela qual desde já propomos um “slogan” para ajudar a publicidade da cachaça estadual: Encha a sua caveira para salvar a caveira alheia).


Fonte: Jornal "Última Hora", de 14/05/1964 — Coluna de Stanislaw Ponte Preta.
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sábado, 17 de maio de 2014

Por causa de uma salsicha

Sonhou a noite inteira. Pesadelos tremendos, pesadelo com dragão, caída em abismos profundos, estas bossas. Bem que a mulher avisou que não devia comer salsicha no jantar. Se havia duas coisas que não combinavam era salsicha e seu estômago.

Quando comia salsicha no almoço, sentia que a distinta passava o dia inteiro no estômago, agora vocês façam uma ideia do que acontecia quando comia e ia dormir. Os pesadelos vinham um atrás do outro. Acordava suado, a tremer de medo. Era obrigado a levantar-se várias vezes durante a noite, tomar antiácidos.

Desta vez a salsicha levou-o a um estranho sonho. Talvez ande muito preocupado com a revolução, não sei. O fato é que, depois de uma das muitas vezes em que se levantou agitado, tornou a deitar e dormiu para sonhar que não havia mais emprego civil no país. Eram todos militares: os chefes de serviço nas repartições, os presidentes de autarquia, os ocupantes de cargos públicos.

Mas isto era o de menos: em seu pesadelo percebia que todos eram militares: a orquestra da boate era uma banda militar, o porteiro do restaurante era um general, o homem do elevador era um capitão e assim por diante.

De repente, mesmo dormindo, deu uma gargalhada. A mulher sacudiu-o para acordar, pensando que ele tinha ficado maluco. Acordou e contou o estranho sonho à mulher:

— Todo mundo era militar — explicou ele, ainda estremunhado.

— Mas você riu de que? — quis saber a mulher.

— É que no sonho, eu passei em frente a uma boate e tinha um cartaz na porta escrito: “Hoje sensacional “strip-tease”, com o Major Pereira”.


Fonte: Jornal "Última Hora", de 23/04/1964 — Coluna de Stanislaw Ponte Preta / Desenho: Jaguar.
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segunda-feira, 12 de maio de 2014

De como Mirinho quebrou o galho

O abominável primo Altamirando tinha um encontro marcado com uma pioneira social aí, dessas que prevaricam com certa regularidade. O ignóbil parente conhecera a distinta dama do nosso “society” noutro dia, quando o marido estava em São Paulo, fazendo um negócio imobiliário. Com aquela conversa que lhe é peculiar, Mirinho trouxe a dama para o seu plantel e vinha vivendo um romance legalzinho com ela.

Toda noite faziam programa juntos. Ora era uma dançadinha num dos inferninhos da Zona Sul, ora era um jantar mais caprichado nesses botecos de nome francês, ora era um discreto cineminha. Depois Mirinho ia com ela pra casa dela, que a dama reside só com seu distraído marido que, além de distraído, estava em São Paulo.

Não é pra me gambá não — como diz Ibrahim — mas o primo estava levando um vidão; não somente porque a dona é boa às pampas, como também vinha financiando os programas. Ora: mulher sem despesa é o ideal de Mirinho Durante esses dias aí da crise, ele passou numa tranquilidade invejável.

Mas, eis que, ontem, o marido voltou. Mirinho telefonou na hora do almoço, para ver se pegava a gordura de graça, mas a dona falou baixinho ao telefone, com ar de conspiradora:

— Depois eu te falo, bem. Ele voltou — e desligou o aparelho.

A tarde, Mirinho tornou a ligar:

— Escuta, queridinha, eu te apanho aí às 7 e vamos jantar juntinhos, tá?

— Mas querido — ponderou ela — Eu não posso. Meu marido voltou.

— Ali isto não tem importância — garantiu o primo. — Ele vai dormir fora de casa.

A mulher deve ter arregalado os olhos do lado de lá da linha, porque perguntou, visivelmente intrigada:

— Como é que você sabe que ele vai dormir fora de casa?

— Nada não. É que eu telefonei para um cara meu cumpincha, que trabalha na Polícia, e disse pra ele que teu marido é comunista.


Fonte: Jornal "Última Hora", de 10/04/1964 — Coluna de Stanislaw Ponte Preta / Desenho: Jaguar.
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segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Ao morrer sorrindo

"Morreu, acabou-se" — ledo engano. Morreu, começa o problema, porque já não há mais lugar onde enterrar o falecido. "Vocês desculpem tratar de um assunto tão funesto, mas é que, de uns tempos para cá, não o sentimos, tão macabro assim, graças a um amigo que é agente funerário.

Foi ele quem, acostumado ao trato das cerimônias fúnebres, acabou nos convencendo de que, tirante a família do morto, ninguém tem nada a perder quando um cidadão abotoa o paletó pela última vez. Pelo contrário, ser agente funerário é um alto negócio.

Tudo começou na praia, em Santos. Estávamos na companhia desse amigo, esquentando ao sol, quando apareceu um cadáver boiando sobre as ondas. O pessoal foi todo pra beira do mar espiar e ele, de repente, disse como quem fala para si mesmo: "Tomara que a corrente não leve para São Vicente."

Estranhamos aquele desejo e ele então explicou que existiam duas agências funerárias em Santos: a dele e a de um rival. Como a clientela não visse com bons olhos a concorrência entre os dois, nem fosse hábito familiar abrir concorrência para enterrar ninguém, tinham resolvido dividir a cidade em dois campos:

— Quem morre do lado de lá é dele, quem morre do lado de cá é meu — esclareceu.

Aquele freguês, que boiava nas ondas, se viesse a dar à praia ali, era dele. Mas se a corrente o levasse para São Vicente, perdia o negócio, pois a jurisdição era do rival. Daí o seu desejo de que as ondas trouxessem logo para a areia aquele que boiava lá fora da arrebentação.

Olhava para o cadáver sem placidez nem ganância, como um quitandeiro olha as verduras, um pianista, o piano ou um joalheiro, as jóias. Era o seu negócio que boiava ali perto. Esse agente funerário de Santos, nosso amigo, homem jovial e excelente companheiro em qualquer circunstância, alguns anos depois chegava ao ápice da carreira, quando o Governo do Estado nomeou-o para dirigir o SFC (Serviço Fúnebre da Capital), autarquia que se responsabiliza pelos enterros em São Paulo.

Estava aqui o distinto caçando na selva paulista, amoitado num bar, esperando a caça passar, quando o antigo agente funerário nos encontrou. Explicou sua condição de diretor autárquico, explicou que lá em São Paulo não é como no Rio, onde os serviços funerários pertencem, sem concorrência, à Santa Casa, explicou mais uma porção de coisas e, depois, convidou a gente para fazer uma visita ao SFC. Como a caça não passasse, aceitamos o convite e visitamos fartamente o dito serviço.

Ele se mostrou excelente cicerone, levando a visita às diversas salas, demonstrando por que o caixão de peroba é melhor do que o caixão de pinho e mostrando os melhoramentos introduzidos, tais como caixão de terceira forradinho de capitonê, travesseiro com recheio de capim cheiroso, para caixões de primeira etc. etc. Isto sem contar com os truques que sua experiência lhe ensinara. Por exemplo: quando morre um político eminente, o número de puxa-sacos que quer ajudar a levar o caixão é enorme e, neste caso, em vez das clássicas alças douradas — três à esquerda, três à direita, como manda o figurino — o caixão deve ter um varal de cada lado, pra caber mais mão de puxa, na hora do embarque.

— Quando assumi a direção deste serviço, isto aqui era uma lástima. Os castiçais estavam caindo aos pedaços. Veja os castiçais novos, que adquiri. Uma beleza, não são? — E, com sinceridade na voz: — Agora já pode um Matarazzo, um Almeida Prado, um Lara Resende morrer sem susto, que estamos aptos a servi-los.

Faz muito tempo que não vemos o nosso amigo, hoje próspero.

Certa vez nos contou que começara o negócio graças a um vizinho que era coxo, desencarnara e fora vítima da precipitação de outro agente funerário. Quando esse agente foi medir o freguês para encomendar o caixão, já o encontrou na sala, em cima da mesa, coberto por um lençol. Sem a devida experiência, o agente não perguntou pra família se o falecido era coxo. Resultado: mediu do alto da testa à ponta do pé, pela perna mais curta e, quando o caixão chegou, não satisfazia às medidas do freguês. Foram comprar outro caixão para enterrar o vizinho, e ele, que tinha uma tia velha já mais pra lá do que pra cá, mediu a parenta disfarçadamente verificando que ela cabia dentro do caixão recusado. Adquiriu a peça por preço de ocasião e guardou na garagem. Um mês depois a tia embarcava nele. Desse episódio ficou-lhe o gosto pelo negócio.

Mas como dizíamos, já vai pra algum tempo que não o vemos. A última vez foi aqui no Rio, durante o velório de conhecido artista. Ele compareceu como visita. Nada tinha a ver com o serviço de bordo, mas nem por isso deixou de criticar certas deficiências. Ao sair contou que — mais por carinho do que por necessidade — ainda mantinha a agência funerária de Santos, que tinha um nome dos mais convidativos: "Nossa Casa".

— Falar nisso, você poderia fazer um jingle de propaganda para mim? — perguntou. E, ao perceber nosso espanto, explicou que estava fazendo uma grande remarcação no estoque e precisava anunciar a liquidação. E tanto chateou que fizemos o jingle. Não sabemos se tocou no rádio, mas ainda nos lembramos bem: a música era aquela da cançãozinha de Teresinha de Jesus, de uma queda foi ao chão etc. etc.

A letra era assim: Funerária "Nossa Casa" / Tem caixão de alça dourada / Adquira um hoje mesmo / Por um preço camarada.

Se vocês estão pensando que existe exagero de nossa parte, ao descrever o trato jovial que nosso amigo tem, para com as coisas fúnebres, estão muito enganados. Ele não é o único, inclusive. Em Recife, recentemente, a Prefeitura negou a um agente funerário o nome de "Ao Morrer Sorrindo", para sua casa de vender pijama de madeira. E aqui mesmo no Rio, há pouco tempo, um cavalheiro botava o seguinte anúncio, em "O Globo": "Sepultura Perpétua — Cedo direitos de uma, na parte plana do Cemitério São João Batista, por Cr$ 1 600 000,00, ou troco por apartamento de sala, 2 quartos, na Zona Sul. Favor ligar para 22-0387 ou procurar informações na Avenida Rio Branco 173 — sala 1306." Isto prova que, em algum lugar do Rio, há um camarada que prefere viver melhor a ter conforto depois da morte.

É, companheiros, o Rio cresceu tanto que morrer agora é um problema. O camarada do anúncio está pouco se incomodando com o que possa lhe acontecer depois de pisar no prego e esvaziar de todo. Quer seu apartamentinho de dois quartos na Zona Sul, que não é a residência ideal, mas sempre é melhor do que morar em pensão, para poder descansar no meio dos bacanos, depois de devidamente empacotado.

O Rio cresceu — repetimos — e cresceu pra todo lado e pra cima também. Principalmente pra cima. Este detalhe é que deve ter dado a idéia ao arquiteto Wladimir Alves de Sousa, para resolver o problema dos cemitérios cariocas. O Governador, que ultimamente tem perseguido os demasiadamente vivos, está preocupado com os demasiadamente mortos; tão mortos que não têm onde cair idem. E aqui parece que encontra a solução. Leiam a notícia, tal e qual saiu no jornal: "A construção de edifícios de 15 andares, com todos os requisitos de higiene, para instalação de sepulturas e ossários, foi proposta ao Governador pelo arquiteto Wladimir Alves de Sousa. O arquiteto acha que seu plano de cemitérios verticais, apresentado junto com gráficos, croquis e mapas, será a solução para o problema de espaço nos cemitérios do Estado."

Você aí, que é carioca, sente o drama, vá! Talvez seja você o defunto que vai inaugurar a coisa. Será a primeira vez na História que uma pessoa, depois de morta, é enterrada para cima.


Fonte: Tia Zulmira e Eu - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Mais uma da "máquina de fazer doido"

O amigo me conta que, mais do que nunca Tia Zulmira está de parabéns, por ter apelidado a televisão de “máquina de fazer doido”. Embora o apelido seja óbvio, eu perguntei:

— Por quê?

E ele:

— Minha filha!

— Ficou doida?

— Está caminhando para isso. Ela só fala em linguagem de televisão. Eu já proibi que ela visse até os programas em que Dom Hélder Câmara tenta explicar à gente que é mais bonzinho que nós, mas quem pode evitar que uma criança veja televisão? Enquanto eu estou em casa ela obedece, mas... e quando eu não estou? ou então: e quando ela está na casa da avó?

E o amigo conta coisas como esta:

— Ontem, ela saiu com a empregada para comprar macarrão para o almoço. Quando eu a vi saindo, perguntei onde ia e ela me respondeu cantando, com aquela musiquinha terrivelmente imbecil do Bat Masterson: — “Vou com a copeira lá na rua / Comprar coisas pra refeição / Na hora de botar na mesa / Bote macarrão / Bote macarrão”.

— Que idade ela tem? — perguntei.

— Doze anos.

— E fez o versinho na hora, inspirada em Bat Masterson?

—Fez

— Então o caso á grave.

— Gravíssimo — superlativou o amigo, arregalando os olhos — Uma criança que se inspira em Bat Masterson para fazer uma gracinha para o pai, é um futuro debilóide da Pátria.

Concordei, com ar grave, e ele esclareceu que esse é um exemplo em muitos. A televisão está fazendo doido em série, que nem os americanos faziam “jeep”, durante a guerra. E contou mais esta:

— Ontem, eu cheguei e, quando ela ouviu barulho de passos na sala, perguntou lá de dentro se era eu. Quando obteve a resposta afirmativa, veio de lá, falando com voz de locutor sensacionalista: “Naquela tarde de agosto da década de trinta, protegida por Elliot Ness e os federais, a menina foi até à sala disposta a dar um beijo no Papai.

Abraçou-o e deu o beijo. Depois fez uma rajada de metralhadora imaginária com a boca: tá-tá-tá-tá-tá... e caiu “morta” no tapete.


Fonte: Jornal "Última Hora", de 03/09/1963 — Coluna de Stanislaw Ponte Preta.
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sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Maconha via aérea

Depois vocês dizem que a gente inventa, olha só. Diz que o diretor da Penitenciária andava besta com o consumo de maconha no interior da dita. Havia uma vigilância impressionante, guarda pra tudo que era canto, um pelotão de homens designado para revistar os suspeitos, um pelotão de mulheres para revistar as suspeitas (e o uso de mulheres era para as suspeitas não dizerem depois que tinham sido revistadas na base da bolinação), havia um vigia em cada canto mas qual... virou mexeu, um guarda apanhava um detento maconhado.

— Quem foi que lhe trouxe a maconha? — perguntava o diretor.

E vocês pensam que o maconhado contava? Aqui ó...

Até que, noutro dia, espiando pela janela do seu gabinete, o diretor viu diversos papagaios de papel fino, em lindo colorido, esvoaçando no céu. Ficou olhando e ele achando bacaninha talvez a se lembrar do seu tempo de criança pois — embora possa parecer exagero — até mesmo um diretor de penitenciária já foi criança.

Dias depois o diretor olhou de novo pela janela e notou que havia mais papagaios esvoaçando, quando era hora dos detentos estarem no pátio. Achou aquilo estranho e ficou de olho.

Vanja vai Vanja vem, no dia seguinte foi a mesma coisa. Um papagaiozinho empinado aqui, outro lá longe, mas quando chegou a hora dos detentos irem pro pátio tomar sol, começou a subir papagaio, vindo do Morro de S. Carlos, que fica por trás da penitenciária e vai se derramar ali prós lados do Largo do Estácio, onde nasceu a primeira escola de samba, chamada "Deixa Falar", mas isto é musicologia e fica pra mais tarde.

O diretor ficou besta com tanto papagaio que subia e — de repente — arrebentava a linha e ia cair no pátio:

— Isto é contrabando de maconha — pensou o distinto.

Desceu e ficou esperando.

Um papagaio amarelinho com listinhas azuis estava lá no alto, indo e vindo. De repente a linha arrebentou e ele encolheu o rabo e veio em lindo estilo folha-seca, cair dentro da penitenciária. O diretor correu, apanhou o papagaio... tava pesado de maconha.

Agora, na Penitenciária do Estado, além dos departamentos existentes, acaba de ser fundado mais um: Departamento de Caçador de Papagaio de Papel.


Fonte: Jornal "Última Hora", de 20/09/1963 — Coluna de Stanislaw Ponte Preta.
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segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Ainda a salvação através do urubu

Pois, irmãos, foi aquele camarada em Santos exportar urubu para a Europa e todo mundo aderir ao urubu (vide, inclusive, nota no noticiário da Pretapress, fofocalizando o assunto). Conforme disse Tia Zulmira, sem se esquivar ao trocadilho — à cuja prática se dá um tanto bissextamente: “tá todo mundo urubusservando o bicho”.

Ontem um matutino da imprensa sadia, desses metidos a austeros, deu farta cobertura ao urubu. Diz que o urubu é o nome vulgar das aves falconiformes, família das vulturídeas, tribo das sarcorrafíneas, do gênero “Cathartes Illig”, enfim, puxa-saco às pampas do urubu.

E chega a lembrar que, no Paraguai, costumam chamar o urubu de “gallinazzo”, o que não deixa de ser um desrespeito à miséria alheia. No Paraguai, pobre república, na mão de alguns “gorilas” desonestos, eles chamam urubu de “gallinazzo” para terem a ilusão de que são de galinha os ovos de urubu que usam no omelete.

No Brasil (e isto é uma velha história) é proibido matar urubu, porque existe a lenda de que ele ajuda a lavoura. Ora, o urubu sempre foi uma ave pestilenta, transmissora de moléstias e outras coisas, e o fato de ser considerado bom para a lavoura é mais uma prova de que se deve, o quanto antes, fazer a reforma agrária (ou do urubu, se a agrária continuar na mão dos deputados).

Mas deixa isso pra lá. O importante, no caso, é a exaltação do urubu. A. turma anda tão seca por dólares que bastou quatro urubus a 27 dólares para os fundos monetários nacionais, pra ficar tudo adulando o bicho, que vem de ganhar até heráldica e anotações de árvore genealógica num matutino dirigido por uma condesse (veja a importância assumida repentinamente pelo urubu).

Como não entro em frias sem consultar Tia Zulmira, estive ontem no casarão da Boca-do Mato, perguntando a velha o que é que ela acha do urubu:

— Animal humaníssimo, se me permite o termo — falou a sábia macróbia. Tem seus vícios, mas quem não os tem? Taí o Jânio Quadros que não me deixa mentir.

E explicou que, do duro mesmo, só existem cinco espécies de urubu, no Brasil: o urubu-campeiro, que é o trouxa da nação e leva uma vida de lavrador, o urubu-gameleira, que é omisso e fica no galho esperando a situação melhorar, o urubu-ministro, que sempre entra em fria, o urubu-peru, assim chamado porque está sempre peruando, como certos políticos nacionais, e o urubu-rei, que de vez em quando é eleito e vai passar uma temporada no Palácio da Alvorada.


Fonte: Jornal "Última Hora", de 06/09/1963 — Coluna de Stanislaw Ponte Preta.
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domingo, 8 de dezembro de 2013

Urubu: uma nova fonte de divisas

A notícia dada em primeira mão pelo telejornal da TV Excelsior e que terminava com a aparição de Chico Anísio caracterizado em Urubulino, o que aliás levou muita gente a pensar que a notícia fosse de brincadeirinha, acaba de ser confirmada pelo próprio envolvido nela, o Sr. Gunter Scherer Wahling, estabelecido em Santos e que acaba de se tornar o primeiro exportador de urubu do Brasil, cuíca do mundo.

Sim, irmãos, o Brasil já exporta urubu, embora ainda em pequena escala, talvez por causa do retraimento do mercado consumidor. O distinto acima citado, enviou para o Amsterdam quatro urubus brasileiros, muito bem nutridos o que não chega a ser um contrassenso, pois se há alguém no Brasil que não tem o menor problema de nutrição é o urubu.

O exportador de urubu estreou no interessante ofício ao receber um pedido de remessa de urubu, feito pelo Jardim Zoológico de Amsterdam, que queria dois casais da dita ave, para sua coleção. O Sr. Wahling esteve na CACEX e tirou licença sem a menor dificuldade, o que nos deixa a impressão de que já havia uma tabela adrede preparada para exportação de urubu, do contrário o caso teria que ser estudado, como aconteceu com um personagem de Eça de Queirós, que recebeu de um amigo no Egito, uma múmia e, como na Alfândega de Portugal não havia tabelamento para importação de múmia, ele quebrou o galho pagando direitos de arenque defumado, que era a coisa mais parecida com múmia que havia na relação de taxas para direito de importação.

Eis, portanto, que a primeira coisa estranha é a presteza da CACEX em licenciar urubu. Mas outras há. Por exemplo, entrevistado pelos coleguinhas da imprensa o exportador conta que, concedida a licença “contratei alguns caçadores especializados, que não tiveram dificuldade para localizar a mercadoria nas matas vizinhas”. Donde se conclui que existem caçadores especializados de urubus, coisa que ninguém suspeitava.

Assim, de tudo fica uma esperança de melhorar nossas divisas no exterior. Cada urubu foi vendido por 24 florins, o que dá um total de 96 florins ou — em dólares — US$ 27 ou ainda — em cruzeiros — Cr$ 27 mil.

Considerando-se o valor do dólar e a quantidade de urubus do país, lá salva a Pátria.


Fonte: Jornal "Última Hora", de 05/09/1963 — Coluna de Stanislaw Ponte Preta.
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sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Conto policial

Tia Zulmira agora deu pra isso: virou uma espécie de Agatha Christie da Boca do Mato e resolveu escrever contos policiais. Tá na cara que a sábia parenta tem, sobre sua coleguinha citada, a vantagem de não ser inglesa metida a nobre, que é gente mais mascarada do que — por exemplo — dono de armazém de secos e molhados, quando o Vasco é campeão.

De mais a mais, a cultura da experiente macróbia é tal que compará-la a uma simples Agatha Christie é até falta de respeito. Deus nos livre de ela vir a saber que seu sobrinho fez a comparação. Ficaria tão magoada que poucas possibilidades teríamos de frequentar o suculento breakfast de sua aprazível mansão, pelo menos no correr deste resto de 1961, tempo bastante para arrefecer seu amuo.

Mas deixemos de conjeturar possibilidades e firmemos o assunto no terreno fértil dos acontecimentos. A velha resolveu escrever contos policiais e, ainda ontem, durante a farta distribuição de "mãe-benta" que ela fez ao café, roubamos um desses contos que por sua vez, confessa ela, foi roubado de uma idéia do coleguinha panamenho Roque Laurenza. Tal como em filme de Hitchcock, em geral chatíssimos, ninguém pode entrar na sala de projeção depois do conto começado. É que Tia Zulmira é de uma sutileza bárbara e o conto — para ser entendido — precisa de duas coisas: que o leitor seja atento e, de preferência, que não seja débil mental.

"Eram mais ou menos 2 horas da madrugada, quando a porta se abriu e uma lufada de vento entrou pela sala, espalhando os papéis que estavam sobre a mesa. Atrás do vento entrou um homem horrível, com cara de macaco, orelhas grandes e cabeludas. Seu olhar era de faminto e sua expressão era a de um louco. Imenso, deu dois passos em direção ao dono da casa e, estendendo a mão enorme, disse com voz rouca:

— Eu quero comer.

O escritor, que estava escrevendo em sua pequena máquina portátil, levantou-se apavorado e caiu no chão, fulminado por um ataque cardíaco. Aquele que entrara tão abruptamente, ficou indeciso no meio da sala, sem saber se pisava no tapete imaculadamente limpo com seus sapatos cambaios e sujos de barro, se socorria o outro ou se dava o fora. Acabou optando pela última hipótese: atravessou a sala, apanhou um prato cheio de sanduíches, que estava ao lado da máquina de escrever, e saiu correndo, sem ter o cuidado de fechar a porta.

No dia seguinte, pela manhã, a empregada encontrou o cadáver do escritor e chamou a Polícia. Pouco tinha a declarar. Ao comissário Jeff Thomas (famoso na localidade por jamais ter descoberto nenhum criminoso), explicou que chegara pela manhã, para o serviço, e encontrara o patrão morto. Trabalhava para ele havia mais de um ano e pouco sabia a seu respeito. Era escritor de contos de terror, que uma empresa americana editava com êxito. Sofria do coração e era um homem excêntrico. Morava sozinho naquela casa afastada da cidade e só recebia, de raro em raro, a visita do editor ou do médico, que o examinava regularmente. Não parecia ter inimigos, mas estava sempre com ar soturno, como a imaginar os personagens de seus contos misteriosos.

Jeff Thomas botou o cachimbo apagado no bolso (nunca fumava; usava cachimbo porque ouvira dizer que todo policial inglês usa cachimbo), agradeceu à empregada os esclarecimentos prestados, que, por sinal, não esclareciam nada, e pegou o laudo médico que o legista acabara de assinar. Lá estava: morte natural (colapso cardíaco). Jeff sentiu que o caso estava encerrado. Embora estivesse certo de que alguém entrara naquela sala antes da empregada. O tapete sujo de lama (fora limpo na véspera, segundo a empregada), a porta escancarada, mesmo com o frio que fizera na noite anterior, o desaparecimento de um prato cheio de sanduíches, que a empregada garantiu que colocara ao lado da máquina do escritor — tudo isso lhe dava a certeza de que, naquele caso, havia um mistério qualquer.

Jeff gostava de ser detetive, mas não gostava de se chatear. O homem morrera do coração, não havia suspeitos, logo o melhor era mandar o corpo para o necrotério e avisar a família. Deu esta ordem aos seus auxiliares e — apenas por desencargo de consciência — apanhou o papel que estava na máquina de escrever, para juntar ao relatório que seria obrigado a fazer. Eram as últimas palavras escritas pelo escritor falecido. Jeff leu e não deu qualquer importância.

Era, por certo, o início de mais uma história de terror e começava assim:

"Eram mais ou menos 2 horas da madrugada, quando a porta se abriu e uma lufada de vento entrou pela sala, espalhando os papéis que estavam sobre a mesa. Atrás do vento entrou um homem horrível, com cara de macaco, orelhas grandes e cabeludas. Seu olhar era de faminto e sua expressão era a de um louco. Imenso, deu dois passos em direção ao dono da casa e, estendendo a mão enorme, disse com voz rouca:

— Eu quero comer."


Fonte: Tia Zulmira e Eu - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Caju amigo do homem

O caju, fruta brasileira que aqui já encontrou o Almirante Pedro Álvares Cabral — hoje estátua nos jardins do Russel e anteriormente descobridor do Brasil —, foi batizado (não Cabral, mas o caju) pelos índios tupis. Acreditavam os silvícolas que o referido fruto nascesse de cabeça pra baixo, impressão esta causada pelo caroço (castanha) que o caju ostenta na sua parte de baixo. Mas isso é besteira porque, pensando bem, não somente o caju, mas todo mundo nasce de cabeça pra baixo.

De como o caju se transformou em amigo do homem, principalmente do homem que bebe e, particularmente, do homem casado, é coisa que Stanislaw, grande sociólogo frugívoro (salvo seja), explica nas linhas subsequentes. Sabemos que certos entreguistas vão dizer que este estudo sobre a brasilidade do caju é bobagem, mas o que se há de fazer? Como dizia Hoffmann, "a inveja é a sombra da glória".

Mas voltemos ao saboroso fruto, cuja nódoa é de amargar e, quando pega na roupa da gente, só sai na safra seguinte, segundo nos revelou o compositor Luís Antônio, que é militar e Flamengo, sendo — portanto — duplamente supersticioso. De qualquer maneira, a nódoa deixada pelo caju mancha tanto a roupa da gente quanto — por exemplo — aquele baile do João Caetano mancha a reputação de rapaz solteiro.

Saboroso, carnudo e pródigo em caldo, o caju — em matéria de serventia — só perde para o boi, animal doméstico de grande utilidade e do qual o homem só não aproveita o suspiro, porque o resto — do chifre ao estrume — já está tudo industrializado. Da castanha do caju se aproveita o caroço para nos fazer beber mais, colocando-o picadinho e terrivelmente salgado, em pratinhos sutis sobre a mesa do bar. Também da castanha se aproveita a tradicional e laxativa cozinha baiana. Vatapá (principalmente) e outros pratos de menor prestígio levam a sua castanhazinha moída, para alegria daqueles que se perdem pela boca, sem dar vez aos intestinos. Ainda desse caroço — responsável pela mancada dos silvícolas acima citada — se faz um magnífico pirão, usado em pratos de bacano, como a galinha à normanda e o pato à Califórnia, embora nem na Normandia nem na Califórnia haja caju, o que prova a versatilidade de sua castanha.

A própria polpa da fruta ora em estudo é útil, pois famílias menos favorecidas do litoral nordestino comem-na ensopada, sempre que lhes falta a mandioca, a batata ou a cenoura, tubérculos mais apropriados para um PFR (Prato Feito Reforçado). O caju pode ser ainda servido em calda, frito, cozido ou liquefeito, sendo que, no último caso, já não é mais caju: é cajuada, mas nem por isto perde a personalidade.

Costuma-se dizer que o cachorro é o melhor amigo do homem, mas a afirmativa é um pouco precipitada. Ninguém bota caju no quintal para tomar conta da casa, mas há muitas coisas que cachorro não tem e que sobram no caju. Afinal de contas, o cachorro não tem castanha, não é saboroso e, na hora do refresco, ninguém espreme um cachorro para fazer uma suculenta cachorrada. E tem mais: dizem que quando o dono é bêbedo o cachorro é sem-vergonha, adesão que não recomenda o cão. Já o caju, ao contrário, é o melhor amigo do homem... do homem que bebe e — acima de tudo — do homem casado.

Há tempos, certo cavalheiro desta praça, cansado de ser espinafrado em casa pela distinta cônjuge, quando chegava com bafo de onça por ter tomado umas e outras nessas tendinhas pela aí, tratou de se dedicar à busca daquilo que tirasse definitivamente o cheiro de bebida da boca de um castigador de alcalinas. Começou — é claro — pelos inventos americanos, como pílulas de clorofila, chiclete, drops e outras bobagens de grande aceitação no mercado e de nenhuma eficiência como tira-bafo.

Já na iminência de desistir, esse abnegado da ciência, certa noite, antes de ir para casa caneado, passou na casa de um conhecido para entregar uma encomenda. E este, na base da gentileza, ofereceu uma cajuada. Como estivesse com sede, o coleguinha de Pasteur aceitou o refresco e, em seguida, foi pro holocausto, digo, foi pra casa. E qual não foi a sua surpresa quando, ao chegar e beijar a megera, digo, a esposa, ouviu da boca desta o elogio: "Sim senhor, assim é que eu gosto. Você hoje não está cheirando a bebida".

O pesquisador, tal como o já referido Almirante Cabral ao descobrir a gente, descobriu a fórmula do engana esposa por acaso. Submeteu o caldo de caju aos mais severos testes — que nem os americanos fazem com foguete, em Canaveral — e deu sempre certo, ao contrário dos foguetes. Chegou a bochechar com "Olho D'água", que é cachaça de persistente aroma, mastigando um caju em seguida e indo para casa, onde, num rasgo de confiança no progresso da ciência, soprava o nariz da mulher, sem que esta sequer percebesse bulhufas.

Homem reconhecido, inventou a expressão hoje universal: caju amigo.

Podíamos ainda enumerar indefinidamente outras vantagens do caju, mas vamos parar por aqui, pois ele é uma riqueza do Brasil e — depois que os contrabandistas do café foram pilhados — é bem possível que os vivaldinos, sempre dispostos a dar beliscão em fumaça, se voltem para o caju e passem a contrabandeá-lo.


Fonte: Tia Zulmira e Eu - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Dos sertões ao matagal

Somente porque tem uma bicicleta o camarada não é necessariamente um ciclista. Do mesmo modo o camarada pode ter uma cuíca e não ser sambista, um telefone e não ser telefonista, uma batuta e não ser maestro, uma mulher e não ser casado. Já com este nosso personagem de hoje, a coisa foi diferente: tirou uma máquina de escrever na rifa e resolveu ser escritor.

Como, minha senhora? Se a rifa foi da paróquia de São Judas Tadeu, dirigida pelo Padre Góis, aquele que diz que o referido santo é tão rubro-negro que costuma suar a camisa número 12 quando o Flamengo está jogando? Não senhora. A rifa foi promoção de um amigo que precisava operar a avó. E fique quieta, madame, porque nós vamos contar a história toda.

Deu-se que ele ficou com um bilhete da rifa: o número 312, centena do burro. Quando a coisa correu, saiu premiado e ganhou a máquina de escrever. Não era lá muito nova; pelo contrário, faltava a letra "Q" mas, felizmente, tinha a letra "K" e quem escrevesse podia apelar, escrevendo mais ou menos assim: "Kue linda tarde, kerida — disse Kuincas ao entrar no kuioskue."

Mas isto são detalhes. O importante é kue, digo, que a máquina saiu premiada para ele e, num rasgo de impensado romantismo, resolveu ser escritor. Até então vivia dos seus proventos de aviador mas, entusiasmado pela presença daquela Underwood enferrujada, largou tudo pela nova profissão:

— "Nunca mais serei aviador!" — berrou na solidão do quarto.

O que, madame? Se ele largou a Aeronáutica? Não, dona. Ele era aviador de receita, numa farmácia do bairro. E pare de chatear, senão não conto a história.

Sim, seria um escritor! Mas de quê? Escritor propriamente dito, o único que consegue viver disso no Brasil (por causa das traduções pro estrangeiro) é o Jorge Amado. Outros escritores, por mais escritores que fossem, enriqueciam os editores. E se fosse escritor de contos policiais? Ah... boa idéia. Mas no Brasil é difícil, por causa da concorrência dos americanos do norte. Em cada três escritores americanos, oito escrevem contos policiais. O único escritor brasileiro no gênero é o Luís Coelho, mas este ganha dinheiro aos potes, no Foro de São Paulo. É um grande advogado e por isso é que se dá às veleidades de Conan Doyle do Anhangabaú. Talvez um escritor mais simples: de crônicas mundanas. Sim, cronista mundano.

Olhou-se no espelho e ficou encabulado. Tal como todos os cronistas mundanos, não tinha cara de cronista mundano. A decisão veio de repente. Lembrou-se que, na véspera, durante o bate-papo no café, alguém tinha dito que o último filme de Zé Trindade — "O Empacotador de Fumaça" — tinha dado 10 milhões de renda na cadeia do Luís Severiano.

O que, dona? Se o Luís Severiano está em cana? Ainda não, minha senhora. Por que haveria de estar? O filme tinha dado dez milhões na cadeia, mas cadeia de cinemas do referido cidadão.

Ora, se um filme cocoroca como aquele (ele assistira ao filme no Cine Rian, com uma mão na perna da namorada e outra na sua cocando pulga) tinha dado aquele dinheirão todo, imaginem um filme bem planejado, com um escrito inteligente, como aquele de "O Cangaceiro", que o Lima Barreto fez? É. Ia ser escritor de cinema. Faria um argumento com diálogos sérios, usando como tema algo bem brasileiro. Não usaria cangaceiro porque, de uns tempos para cá, cangaceiro é a mesma coisa que cowboy só que o chapéu é de couro e a aba é pra cima.

Durante uns três meses não fez outra coisa senão escrever e rasgar o que estava escrito. Não desanimou por causa disso. Pelo contrário: quanto mais escrevia, mais sentia que seria capaz de escrever um argumento que seria a redenção do cinema nacional. E, de tanto tentar, acabou encontrando a idéia genial: faria uma adaptação perfeita de "Os Sertões", de Euclides da Cunha. Era a grande epopéia brasileira, na qual poderiam ser incluídos grandes números do nosso folclore, poderiam ser aproveitados os mais sérios intérpretes e ainda sobraria margem para diálogos soberbos. Isto sem contar as possibilidades imensas da história como linguagem cinematográfica e os recursos fotográficos que se poderiam usufruir das cenas imaginadas.

Duraram quase dois anos as suas vigílias, batucando a velha máquina, na adaptação da grande obra literária de Euclides da Cunha em obra supinamente cinematográfica. Suas economias, do tempo em que ainda era aviador (de receitas), já tinham ido pra cucuia. Devia quase 50 contos nos tamboretes da praça, pequenos bancos que se dão ao feio vício da agiotagem. Mas não desistiu.

Depois de tanta luta, viu um dia o trabalho pronto. Estava tinindo. O primeiro produtor que procurou foi o Eurides Ramos, que recusou a proposta. Bem-feito, quem mandou cair nas mãos de Eurides? Foi pro já citado Severiano, mas este também recusou porque estava com 16 fitas do Oscarito prontas para serem lançadas. Procurou aquela turma de São Paulo, que quis transformar os morros de São Bernardo do Campo em Beverly Hills, e penetrou pela tubulação. Nada.

Foi aí que soube de um italiano recém-chegado. Como todo italiano recém-chegado que não é nobre, este era cineasta. Já tinha interessado um outro italiano (este há muito chegado e nobre, além de industrial) a financiar um filme. O nosso abnegado amigo botou a papelada debaixo do braço e foi discutir o assunto com o "cineasta". Foi uma luta dura, na qual capitulou e acabou entrando pelos Canudos, que nem Euclides da Cunha. O "cineasta" já tinha contratado o Alberto Ruschel para fazer o mocinho e o Milton Ribeiro para representar o bandido.

— Aqui onde você botou um número folclórico, fica melhor a gente incluir uma marchinha que a Emilinha Borba vai cantar e vai ser um estouro — propôs o cineasta.

E não adiantava dizer que não. A Emilinha, realmente, defenderia melhor o capital do industrial que, por sinal, achou o argumento ótimo, mas ficou meio chateado porque o mocinho não tinha um amigo. Mandou modificar este detalhe e contratou o Grande Otelo. Enfim, foram introduzidas pequenas modificações no entrecho. Coisa de somenos, que não dava para atrapalhar muito. As lutas dos sertanejos foram devidamente adaptadas para uma briga na boite, cena que só aparecia no fim da fita, para dar mais sustança ao grande final. E o título, para que o tal Euclides da Cunha não viesse depois reclamar direitos autorais, também foi mudado. Em vez de "Os Sertões", passou a ser "Mulheres no Matagal". Vai estrear breve.

Como, minha senhora? O que foi que aconteceu com o grande escritor? Ora, dona. Teve que topar tudo para pagar o que devia. Não, senhora... não está mais escrevendo. Voltou a ser aviador. Está funcionando na Farmácia Santa Teresinha, aberta dia e noite.


Fonte: Tia Zulmira e Eu - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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terça-feira, 19 de novembro de 2013

Da galanteria

Dizem pela aí que a História se repete. Como os cômicos de teatro rebolado, a História se repete. No setor da galanteria, por exemplo, a História não desmente essa teoria. O que foi involução num tempo passa a evolução noutro tempo, para voltar a ser involução numa época adiante. Há muitos anos atrás — o marechal Lott não era nem escoteiro — o homem tratava a mulher com uma deferência de puxa-saco.

Era até chato. Antes, no entanto, isto é, na Pré História, segundo nos contou o Brício de Abreu, mulher só saía da caverna (naquele tempo não havia Lei do Inquilinato ainda, pois ninguém tinha casa: era tudo caverneiro) pra passear com o marido numa condução: cabelo. Sim, o marido agarrava a distinta pelos cabelos e saía puxando pelos caminhos.

Tempos mais amenos cultivaram a galanteria. Teve até um cara que, ao ver a lama se interpondo no caminho de uma dama, tirou a capa brocada que levava aos ombros e atirou no chão, para que ela passasse por cima sem sujar os pés. Isto foi o máximo em charme que a História recolheu. Só não citamos o galante personagem pelo nome porque hoje estamos de memória fraca e empenhamos a Enciclopédia Britânica.

Mas — dizíamos — a História se repete e o que foi galanteria ontem é descortesia hoje. Atualmente homem não está dando muita bola pra mulher, no setor da educação não. Talvez porque as mulheres de hoje são mais badalativas e concorrem com eles em tudo, o fato é que o negócio ficou "mano a mano" e mulher tem que disputar na raça com o homem tudo aquilo que desejar.

Quem não se conforma com isso é Tia Zulmira, senhora que foi broto de outros tempos e que não se adapta ao rebolado atual. Tanto que só fizemos este longo introito para contar o episódio vivido pela sábia macróbia da Boca do Mato, dentro de um ônibus.

A velha foi obrigada a deixar momentaneamente o seu retiro para fazer umas comprinhas no Centro. Para tanto tomou um ônibus e, velha como está, viu-se na contingência de viajar em pé, porque nenhum dos marmanjos refestelados nos bancos se dignou ceder o lugar. Vendo que nenhum tinha educação, Tia Zuzu apelou para o patriotismo deles. Tirou uma bandeirinha do Brasil do bolso e começou a cantar: — "Ouviram do Ipiranga as margens plácidas..."

Pois nem assim! Ninguém se levantou.


Fonte: Tia Zulmira e Eu - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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domingo, 17 de novembro de 2013

Faquirismo e provocação

Os mais assíduos (leitores, naturalmente) devem estar lembrados do que escrevemos no dia em que Silki — o Pele da Fome — entrou novamente numa urna de vidro para tentar recuperar para o Brasil o recorde da dita, ora nas mãos, ou melhor, no estômago do francês Burmah. Escrevemos na ocasião que o grande inimigo desse Didi da inanição seriam as provocações do público, um público que pagava para chatear o faquir.

Já da última vez que Silki bateu o recorde, a coisa tinha acontecido. Inimigos da fome pagavam entrada para ver o faquir, chegavam junto à urna de vidro munidos de pastéis, empadinhas e outras guloseimas, e ficavam comendo na frente dele, para ver o bicho que dava.

O faquir resolveu temporariamente o problema fechando os olhos, para não ver. Surgiu, porém, um torturador requintado que comia a empadinha e cuspia o caroço em cima da urna, com toda a força. Ora, sendo a urna de vidro, o caroço ao bater fazia tiliiiiiimmmm... obrigando o coitado a abrir os olhos de susto.

Agora a provocação foi maior. Silki pretendia ficar mastigando vento 108 dias — temporada que lhe traria o recorde de volta — mas abandonou a urna com 36 dias, vítima de um ataque de nervos e a conselho de seu médico assistente, que o retirou à força ajudado pelo delegado de Costumes e Diversões.

Silki não queria sair, mas seus nervos estavam em tal estado, que foi obrigado a ceder e se internar numa Casa de Saúde, onde ainda se encontra. O secretário do faquir falou à imprensa e contou, revoltado:

— Muitas pessoas, ao visitá-lo, exibiam pratos variados e apetitosos, como galinha assada, empadas, doces etc. E o pior é que, pela madrugada, lá chegavam mulheres trajando roupas escandalosas, algumas até exibindo certas partes do corpo. Silki não agüentou. Vejam vocês que baianada!

O secretário não explicou pra imprensa quais as partes do corpo que as elegantes exibiam, mas isto não importa. Mulher — quando é boa — qualquer parte serve, conforme costuma dizer nosso nefando primo Mirinho — o crápula.

Também não explicou qual das abstinências provocou o estado de nervos de Silki. A gente, porém, tira as conclusões.

Da outra vez ele bateu o recorde mesmo com a provocação de exibições gastronômicas. Desta vez é que começou a novidade de mulher ir provocá-lo. Portanto, dos seus jejuns, ele deve ter sucumbido ao segundo.


Fonte: Tia Zulmira e Eu - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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sexta-feira, 11 de outubro de 2013

De como caçar o ratinho

Os jornais da oposição continuam implicando com o que chamam de "ciclo zoológico" do Palácio Guanabara, depois que lá se instalou o governo de Carlos Frederico Werneck De. Aqui estamos a ler um matutino que reprova a existência de alguns passarinhos nas gaiolas penduradas nas varandas do palácio, porque os ditos passarinhos fazem "fi-fiu" para as funcionárias que transitam pelo local. Não achamos que isto seja feio. O papai aqui não é passarinho nem nada, mas já fez muito "fi-fiu" para funcionárias. Em alguns casos — inclusive — houve adesão.

Mas as folhas da oposição não perdoam. O "Diário Carioca" informa que o "ciclo zoológico" aumentou com o aparecimento de um ratinho cujo — cada vez que corre pelo assoalho do Guanabara — obriga a um monte de funcionárias a subir nas cadeiras e levantarem a saia. — "Ratinho legal" — diria Primo Altamirando, nosso abominável parente.

Já Tia Zulmira, senhora de uma retidão de caráter impressionante, quando soube que há funcionária se dando ao feio vício do strip-tease amador, só por causa do ratinho, ficou indignada e telefonou para o Palácio Guanabara, chamando o administrador. Assim que este atendeu, ela perguntou se já descobriram o buraco do ratinho. O administrador entendeu mal. Tia Zulmira explicou que era o buraco onde o ratinho mora.

Diante da resposta afirmativa, a sábia senhora ensinou um meio infalível de apanhar o ratinho, para que termine de uma vez por todas esse negócio de funcionárias em cima dos móveis fazendo strip-tease de graça.

— Vocês comprem uma lata grande de caviar — explicou a sábia ermitã da Boca do Mato. — Mas comprem caviar do bom: Romanoff, de preferência. Todo dia de manhã um funcionário do palácio pega uma torradinha, bota um pouco de caviar em cima, e enfia no buraquinho onde o ratinho mora.

— Durante quanto tempo? — perguntou o administrador do Guanabara.

— Durante 29 dias — informou Tia Zuzu. — Todos os dias, à mesma hora, coloquem uma torradinha com caviar em cima, no buraco onde mora o ratinho. Quando chegar o trigésimo dia, o encarregado desse serviço deve apanhar um martelo e ficar ao lado do buraquinho. Depois enfia no buraquinho a torradinha sem o caviar. Quando o ratinho puser a cabeça pra fora e perguntar: "Mas que negócio é esse? Só a torradinha? Cadê o caviar?" o funcionário dá-lhe uma traulitada na cabeça e está consumada a "Operação Ratinho".

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Fonte: Tia Zulmira e Eu - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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quarta-feira, 9 de outubro de 2013

O índio

Contou como é que foi. Disse que — de repente — resolveu se fantasiar, coisa que não fazia há anos. Podia optar por duas fantasias: a de árabe ou a de índio, que são as mais fáceis de se fazer a domicílio.

Árabe — sabem como é — a gente faz até com toalha escrito "Bom Dia". Amarra uma de rosto na cabeça e enrola outra de banho no corpo. Por baixo: cueca. Nos pés: sandália. Não fica um árabe rico, mas já dá pro consumo. Índio ainda é mais fácil. Faz-se com uma toalha só, bem colorida. Enrola-se a dita na cintura, com short por baixo. Na cabeça coloca-se o que antes foi o espanador.

Contou que foi de índio porque em casa tinha dois espanadores. Não ficou um índio legal, desses que o John Wayne mata aos potes, em cinemascope. Mas também não chegava a ser desses índios mondrongos que tiravam retrato com o Dr. Juscelino. Se tivesse saído de árabe não teria apanhado a vizinha, distinta que vinha cercando desde setembro, quando ela se mudara para o 201.

E continuou contando.

Índio de óculos também já era debochar demais da realidade. Assim, ao sair pela aí, deixou os óculos na mesinha de cabeceira. Andou pela Avenida, viu as tais sociedades carnavalescas e depois entrou num bar para lavar a caveira. Quando voltou para casa estava ziguezagueando.

Bebera de com força e entrou no edifício balançando. E — coitado — sem óculos, não enxergava direito. Subiu no elevador, saltou no segundo e foi se encostando pelas paredes do corredor. Tava um índio desses que quer apito.

— Que é que tem tudo isso a ver com a vizinha?

Sem óculos — tornou a explicar — em vez de entrar no 202 (seu apartamento), viu a porta do 201 aberta e foi entrando de índio e tudo.

— Era o apartamento da vizinha?

— Era.

— E ela?

— No começo não quis. Mas acabou entrando pra minha tribo.

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Fonte: Tia Zulmira e Eu - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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sábado, 5 de outubro de 2013

Levantadores de copo

Eram quatro e estavam ali já ia pra algum tempo, entornando seu uisquinho. Não cometeríamos a leviandade de dizer que era um uísque honesto porque por uísque e mulher quem bota a mão no fogo está arriscado a ser apelidado de maneta. E sabem como é, bebida batizada sobe mais que carne, na COFAP. Os quatro, por conseguinte, estavam meio triscados.

A conversa não era novidade. Aquela conversa mesmo, de bêbedo, de língua grossa. Um cantarolava um samba, o outro soltava um palavrão dizendo que o samba era ruim. Vinha uma discussão inconsequente  os outros dois separavam, e voltavam a encher os copos.

Aí a discussão ficava mais acalorada, até que entrasse uma mulher no bar. Logo as quatro vozes, dos quatro bêbedos, arrefeciam. Não há nada melhor para diminuir tom de voz, em conversa de bêbedo, do que entrada de mulher no bar. Mas, mal a distinta se incorporava aos móveis e utensílios do ambiente, tornavam à conversa em voz alta.

Foi ficando mais tarde, eles foram ficando mais bêbedos. Então veio o enfermeiro (desculpem, mas garçom de bar "de bêbedo" é muito mais enfermeiro do que garçom). Trouxe a nota, explicou direitinho por que era quanto era etc. etc, e, depois de conservar nos lábios aquele sorriso estático de todos os que ouvem espinafração de bêbedo e levam a coisa por conta das alcalinas, agradeceu a gorjeta, abriu a porta e deixou aquele cambaleante quarteto ganhar a rua.

Os quatro, ali no sereno, respiraram fundo, para limpar os pulmões da fumaça do bar e foram seguindo calçada abaixo, rumo a suas residências. Eram casados os quatro entornados que ali iam. Mas a bebida era muita para que qualquer um deles se preocupasse com a possibilidade de futuras espinafrações daquela que um dia — em plena clareza de seus atos — inscreveram como esposa naquele livrão negro que tem em todo cartório que se preze.

Afinal chegaram. Pararam em frente a uma casa e um deles, depois de errar várias vezes, conseguiu apertar o botão da campainha. Uma senhora sonolenta abriu a porta e foi logo entrando de sola.

— Bonito papel! Quase três da madrugada e os senhores completamente bêbedos, não é?

Foi aí que um dos bêbedos pediu:

— Sem bronca, minha senhora. Veja logo qual de nós quatro é o seu marido que os outros três querem ir para casa.

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Fonte: Tia Zulmira e Eu - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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