domingo, 10 de novembro de 2013

O morto vivo

Naquela noite, enquanto os tropeiros do Brejo se acocoravam ao redor da fogueira, contando histórias, o Zé Piaba fez com que todos se calassem e principiou:

— Nem conto... Quando a “coisa” me deu, eu fiquei imóvel como pedra dormindo em fundo de açude. Por mais vontade que tivesse de me levantar não podia...

Puxou um pequeno tição, acendeu o cigarro de palha e prosseguiu, após algumas baforadas:

— Minha mulher, a Raimunda, quando deu pela “bicha”, achou que eu tinha esticado a canela. Abriu a boca no mundo, a chorar e foi logo chamar o compadre Bernardino para tratar do enterro. O mais interessante é que eu não acreditava na minha morte, pois via e ouvia tudo.

Até não pude esquecer nunca a ocasião que a minha costela se lamentava, dizendo ficar sozinha neste mundão de Nosso Senhor. Eis que o compadre, sem cerimônia, a apertou nos braços, e disse que ela não se incomodasse tanto, que se casaria com ela. Como ele era viúvo, seria um casamento igual, de dois viúvos. Ela ficou mais consolada e tudo ficou combinadinho, ali mesmo nas minhas barbas.

Quando foi noite fechada, começaram a chegar os conhecidos. A Raimunda, a todos que lhe davam os pêsames, ia oferecendo boia de carimã com café.

Mais tarde, coisa dumas 10 horas, enfiaram um pau nos punhos da rede. Lá fora a lua era uma beleza, tomando banho no rio que parecia uma lâmina cortando os campos.

Saíram com o “defunto” e foram pela estrada, cantando umas cantigas horríveis, de arrepiar couro e cabelo. Se eu pudesse teria tremido como queixo de impaludado dos Amazonas. Mais porém eu estava caipora mesmo. Nem para tremer prestava. Nem um sinalzinho de vida. Inda hoje parece que ouço a bruta:

Repouso eterno 
Dai-lhe, Senhor, 
Dá luz perpétua 
O resplandor. 

Quando acabaram essas “ladainhas” já os galos abriam o bico a cocoricar. Eu voltei para o ponto de partida, isto é, para o mesmo lugar em casa, pois o enterro seria no dia seguinte.

De manhã, foi que eu vi o negócio espritar-se mesmo. Iam enterrar-me vivinho da Silva, sem mais nem menos. Mentalmente fiz uma oração à Nossa Senhora das Candeias para que iluminasse o espírito daquela gente e não fizesse comigo aquela judiação. Vocês nem calculam como sofri.

Depois que o Padre rebolou uma porção d'água benta em riba de mim, o enterro foi marchando subindo a ladeira para o cemitério. Eu sentia um terror mortal. Acho que minha garganta estava toda cheia por um nó bem grande que não me deixava gritar. Seria nó mesmo ou apenas suposição? Não sei. O que sei é que, quase na hora H, vi que já podia fazer algum movimento.

Estendi a mão e peguei um dos gajos que iam me levando pelo paletó. Ele se virou e quando deu fé daquilo, nem digo nada: soltou a rede no chão. O outro fez o mesmo. E todos, julgando que eu era alma do outro mundo, deram de gâmbias e catrâmbias. Desandaram a correr que nem um estouro de garrotes bravios.

O compadre Bernardino, o apalavrado futuro marido de minha mulher, pensou que aquilo eram artes do Não-sei-que-diga. Quis meter-me uma carga de chumbo nos couros. Mas felizmente a garrucha negou fogo. E todos corriam com medo de mim como um bando de satanás...

A minha cara-metade só foi para casa depois que o doutor foi ver-me e disse que eu tive um ataque de “calapsia”. Ele disse uma coisa mais ou menos assim. Um nomão feio, arrevesado, que só o tal doutor sabe dizer direito.

E assim eu escapei das garras da morte. Quando à noite apareci de repente num samba, todo lampeiro, o povo quis correr, pensando que era assombração.

O compadre Bernardino é que parece que não gostou nadinha. Pouco tempo depois morreu. Penso que de tristura ou paixão recolhida.

Jayme Sisnando
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Fonte: Revista O Malho, de maio/1944
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sábado, 2 de novembro de 2013

O rato

Respeito o rato. O rato, ao contrário de outros roedores, é sempre um rato. Nada redime o rato. O rato não é redondinho, não é peludinho, não é um amor. O rato não tem vida útil. O rato é ruim. O rato é reles. O rato rasteja. O rato repugna. O rato venderia a própria mãe na Praça Mauá, se houvesse comprador.

Há, é verdade, o ratinho. Pior, o ratinho branco. Algumas pessoas se enternecem com o ratinho. Crianças sonham em ter um ratinho branco em casa e chamá-lo Gilberto. Mas o ratinho branco se tivesse algo a dizer sobre o seu próprio destino, preferiria ser grande e cinzento e espalhar a cólera. O camundongo Mickey não é um herói entre os ratos. E a ovelha branca dos ratos, um traidor da raça.

Os ratos desprezam sol, água limpa, ar puro, essa literatura toda. Os ratos, quando vão à praia, ficam no banheiro do posto. Os ratos odeiam Debussy.

O Deus dos Ratos vive numa caverna do centro da Terra para onde vão todas as latas de cerveja e as cascas de todas as coisas quando preteiam. O Deus dos Ratos tem os olhos injetados de sangue e se alimenta de lava e fósseis. Os ratos maus, quando morrem, vão para o seu lado. Os bons criam asas e vão para o céu dos cachorrinhos, como castigo.

Respeito ao rato. Rato é rato. Rato assumiu. Rato não se regenera. Rato não quer nem saber. Deus criou a Terra e tudo que nela habita, inclusive a barata e o vendedor de enciclopédia, mas não se responsabiliza pelo rato. De todos os animais que existem só o rato não foi criado junto com o mundo. O rato se apresentou.

Quando a criação tiver cumprido o seu ciclo e só sobrarem sobre a Terra o esqueleto de alguns shopping-centers, os diamantes e o PFL os ratos tomarão posse. Sem qualquer solenidade. Sem rapapés e sem canapés. Sem discursos, sem conjeturas sobre o seu papel no grande esquema cósmico. O rato é o rei do resto.

O rato é a vida reduzida aos seus primeiros impulsos, e com bigodinhos. Certa vez pegaram um ratão do esgoto, deram um banho e entregaram para uma ótima, família criar. Queriam testar a influência de fatores ambientais no desenvolvimento do rato. O ratão teve tudo do melhor, desde talco Johnson até bolsas de estudo. Comia na mesa com a família. Estudou francês, história da arte e flauta doce. Aprendeu os valores morais e as virtudes de um orçamento equilibrado.

Finalmente, para completar a experiência, soltaram o ratão na rua para ver que profissão ele escolheria. Talvez alguma coisa em finanças, ou o Itamaraty. E a primeira coisa que o ratão fez foi entrar por um bueiro para procurar a sua turma. Hoje ele ainda visita escondido a casa em que foi criado. Mas não por motivos sentimentais. Desista do rato.

Não quer rever seu quarto com os pôsteres do Snoopy. Não vai visitar a mãe abnegada que lhe contava o martírio dos santos. Vai porque sabe onde guardam o queijo e qual é o olho ruim do gato.


Luis Fernando Veríssimo - Jornal do Brasil - Primeiro Caderno / Opinião, 15/04/1990
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sexta-feira, 1 de novembro de 2013

No tempo da maxambomba


A maxambomba passa correndo passa barulhenta pelas ruas mornas da cidade antiga:

Chá com pão
Chá com pão
Bolacha não...

Vai num doido apito, num apito prolongado e agudíssimo. Sacoleja nos trilhos. Transpõe a ponte:

Tem... lem... tem... tem...
Tem... lem... tem... tem...
Frade da Penha não deve a ninguém...

E corre para os arrabaldes. Monteiro... Caxangá... Arraial... Muito cheiro de manga e de sapotis maduros. Muitas moças de tranças pelos portões para ver quem passa ou para receber quem vem... Os meninos arteiros trepam nos muros e empinam papagaios. Ou chupam pitombas e atiram os caroços no maquinista. Levam pela estrada um piano. Os oito homens caminham de passos certos e cantando

Zomba minha negra.
Zomba meu sinhô.

A maxambomba passa no "mato". E sobe a rampa da Mangabeira. Os velhos jogam gamão nos terraços. A Dindinha embala o neto na cadeira de balanço:

A obrigação de quem cria
É o menino acalentar...

A negra grita: "Tapioca quente!". E Yayá só quer andar é no trem. Ela já manga do palanquim. Dança quadrilha, faz balancê, e sabe uns versos que dizem assim:

Moça nenhuma
Me faça tromba,
Que eu só embarco
Na maxambomba.

A fumaça vai ficando pelo caminho, cheirando a carvão. A "mãe-preta" espirra. "T'esconjuro!". As meninas fazem debaixo do arvoredo, de fitas nas cinturas e mãos dadas:

Diga, senhora viúva,
Você com quem quer casar?
É com o filho do conde?
Ou com o senhor general?

A maxambomba toma carreira:

Vou com pressa...
Vou com pressa...

O povo todo fica no Poço. Painel, bandeiras, músicas, foguetes. O sino toca na capelinha. É a novena, a das "solteiras". Vestidos novos, seda, espartilhos e anquinhas. Rapaziada de redingotes. Vendem na porta "medidas-bentas". Canoas trazem gente da outra banda do rio. "Papai eu quero ir no tivoli!". Sobrados abertos com bicos de gás. "Bonito mesmo!". Dançam lá dentro quadrilha. As damas de saias redondas, fazendo balancês com os cavalheiros de sobrecasacas debruadas. Sorrindo, cortejando-se, derretendo-se... Para um crítico escrever depois:

Quadrilhas e balancês
São favoráveis ensejos
Se não de furtivos beijos
De abraços e apertões
De introduzir petições.

Conversas: "Eu vou tomar banhos salgados em Olinda". - "Também vou. Já comprei minha roupa de baeta". - Num recanto o fandango com o navio e noutro o pastoril de Xandunzinha. "Viva o azul!". E as pastoras entoam:

Ò gentileza, tão formosa e bela,
Eu não sou lírio, nem também jasmim,
Das pastorinhas sou a mais querida
Sou a Diana deste pastoril...

E a maxambomba volta cansada. Puxando, puxando, com sono...

Chá... com... pão...
Chá... com... pão...
Bo... la... cha... não...

O caminho está escuro. Os lampiões estão apagados. Nos sítios o povo dorme. Ainda muito cheiro de mangas e de sapotis. As estrelas piscam os olhos pedindo a madrugada para fechar de todo. Um violão volta da festa tocando. E um homem cantando alto:

Acorda, Adalgiza,
Que a noite desliza...

Lá se vai a boleira com seu xale de franjas e o tabuleiro vazio. Nem um pastel de nata, nem um cocorote, nem um mata-fome de cavalinho... Amanheceu. O corneta do quartel já tocou alvorada e os soldados fazem exercícios. De guritões e calças-encarnadas. Rufam tambores:

Ratos com coco,
Lagartixas com feijão.
No beco do marisco
Tem arroz com camarão...

A maxambomba não pode mais. Prega na ponte. Faz força. Pára.

Chó... chó... chó... chó...
chó... chó... chó... chó...

O povo salta para empurrar.


"No Tempo da Maxambomba" - Crônica de Mário Sette - Revista da Semana, 02/03/1940.
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